Cresci na bolha...e a estourei


Aos 52 anos me é cada vez mais claro o quanto eu cresci dentro de uma bolha. Igual ou talvez maior dos que a que vemos hoje. Nasci em uma família classe média alta que misturou um pai de família rica com uma mãe de origem operária e pobre. Um conto de Cinderela que se desfez ao longo do tempo, mas isso não vem ao caso agora.

Estudei no melhor colégio da região até o 1º ano do que hoje é o Ensino Médio. Mesmo com a família tendo perdido praticamente todas as suas posses quando eu tinha dez anos, até os 15 me mantive no mesmo colégio com bolsa de estudos. Aqui não tem mimimi nem vitimismo, é só uma cronologia para facilitar a compreensão da minha análise. Até que um dia a diretora da escola resolveu que aquela escola que mandava seus alunos para a Disney todos os anos dentre outros luxos, não comportaria bolsistas que não pudessem arcar com esses extras.

Lá fui eu então para a escola pública, o que até então era um terror na minha mente. Sim porque mesmo tendo estudando em escola pública a vida toda, minha mãe usava o fato como uma ameaça a mim e ao meu irmão. "Se tirar nota baixa vai para a escola do governo ver o que é bom". Até que, mesmo com notas boas na escola particular, lá fomos nós para a escola pública.

Não há dúvidas que a qualidade do ensino era bem pior mas o aprendizado de vida foi infinitamente superior. Me adaptei tão bem com aquela diversidade que até emagreci sem esforço.(sim eu era uma criança bem gordinha que compensava no lanche a falta do tênis da moda ou da ida à Disney). Foi o meu primeiro contato com o mundo real, fora da bolha em que eu não precisava me adaptar ao falso ambiente de famílias lindas e felizes, "de bem". Lá dava para falar da realidade da minha casa sem que ninguém deixasse de falar comigo ou me olhasse torto.

Tive muitas surpresas na faculdade, nos fervilhantes politicamente anos 1980. Na faculdade em que eu estudei havia duas frentes disputando os alunos: Juventude Janista ligada ao ex-presidente que voltava à vida pública como prefeito, Jânio Quadros. E a Convergência Socialista, uma ala radical do PT. Não me identifiquei com nenhuma das duas. Ambas radicais demais e analíticas de menos para o meu gosto.

Foi nesse momento em que eu percebi o quanto a minha formação na melhor escola do bairro tinha sido tão deficitária quanto a da escola pública. Comecei a entender um mundo que me havia sido escondido. O mundo impreciso das ciências humanas que era passado de maneira burocrática pela bolha imposta pela escola particular e pela deficiência da escola pública. O debate de ideias, as diferentes visões de mundo que qualquer jovem de Ensino Médio tem condições de entender quando lhe é apresentado, mas que se torna catatônico quando lhe é escondido.

A vida profissional também ajudou muito. Tanto como jornalista - a rotina de repórter de campo durante muitos anos - quanto como géografa trabalhando nos projetos da ex-primeira-dama Ruth Cardoso - convivi com muitas realidades. Fui a muitos lugares.

Não conheci ainda os melhores restaurantes de Paris, como muitos de meus colegas do meu antigo colégio o fazem anualmente, mas conheço lugares em que a grande maioria nem imagina que existam. Localidades como "Tudo bem", "Atrás do Côco", Leliveldia (distrito importante na história de Tiradentes) e bairros do Rio de Janeiro que aparecem apenas nos documentários, fizeram parte da minha vida cotidiana durante anos.

Conversei tanto com empresário presidente de multinacional quanto com bandido comandante de boca. Convivi com governador, prefeito, deputado, ministro, bem como com presidente de sindicato e de associações de artesãos e catadores de material reciclável. Ícones do rock mundial e artistas itinerantes de periferias do interior. Passei muitos "perrengues" financeiros e mesmo hoje, mais estabilizada, certamente essa estabilidade não se compara com a dos meus colegas do antigo colégio que nunca a perderam.

Passaram-se anos, décadas e perdemos contato. Até que graças às redes sociais a turma se reencontrou, mesmo que virtualmente. E foi quando eu percebi o quanto eu nunca fiz parte daquela bolha que ainda os cerca e o quanto sou feliz por isso. O quanto a deficiência cognitiva programada que encontrei em boa parte do grupo não depende do valor pago na mensalidade da escola. Muito pelo contrário. Ela depende da grossura da parede da bolha na qual se está inserido.

Enquanto o País questiona a dupla ilegalidade da ação do Ministro de Educação, por exemplo, (filmagem e exposição de menor infringindo o Estatuto da Criança e do Adolescente e improbidade administrativa pela inclusão de discurso de campanha em ação do executivo) a minha antiga turma da bolha entende que o questionamento não passa de um mimimi sobre se cantar ou não o hino na entrada da escola.

Dificilmente passará pela mente dos habitantes daquele "mundo de Andy" que não se está discutindo ser ou não ser patriota. Talvez porque, por nunca terem saído da bolha e acreditarem que o hastear de uma bandeira ou o cantar de um música é o máximo que um cidadão possa fazer pelo seu país, não consigam cogitar que incentivar as crianças a fazer trabalhos sociais, a cuidar do seu seu patrimônio ambiental e a conhecer mais a fundo a realidade do País possa ser mais eficaz em termos patrióticos do que cantar o hino no modo piloto automático, pensando na próxima partida do videogame (nada contra videogames, só uma analogia). Nada contra o hino, absolutamente nada contra. Mas a discussão não tem nada a ver com isso.

A classe média alta precisa sair da bolha. Precisa tirar o salto e colocar os pés na areia. Andar pelas ruas, conversar com as pessoas, entender que o mundo é diverso. Comanda equipes, dirige empresas, define destinos a partir de um mundo imaginário, que na prática não se concretiza além da porta do próprio escritório. É preciso lembrar que os profissionais gerenciados por quem vive na bolha habitam o mundo real.

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